Por mais que assista a programas desportivos brasileiros acho que nunca me habituarei à forma como os jornalistas reagem, quase sempre surpresos, com as entrevistas de Abel Ferreira, ou qualquer outro treinador português.
Aceito que não seja comum, no Brasil, que um técnico fale tão abertamente de todos os aspectos do seu ofício, mas essa é uma filosofia bem lusitana e, como o próprio já referiu inúmeras vezes, e foi secundado por outros, os treinadores portugueses acreditam que a partilha de conhecimento só beneficia o sector.
Na Europa é normal que os técnicos falem entre si, se questionem mutuamente, debatam o jogo e as nuances de uma partida. Também é normal que assumam ler livros de outros técnicos e, até, de outras modalidades. Como diz o velho adágio: “saber não ocupa lugar”.
Para nós europeus, agora vou ser redundante, é estranho ver a estranheza com que os jornalistas brasileiros reagiram quando Abel Ferreira referiu ter adquirido os livros de Telê Santana e Marcelo Gallardo, e confessou ter adoptado, num jogo contra o rival Corinthians, uma movimentação que o técnico argentino menciona no seu livro.
A humildade, que os jornalistas viram nesta confissão, acima de tudo é uma demonstração que ninguém sabe tudo e todos aprendemos com todos, em todos os momentos.
A pergunta que se impõe é: Que motivos existem para explicar a surpresa dos jornalistas brasileiros às declarações de Abel Ferreira?
Para responder a essa dúvida basta estarmos atentos às entrevistas de outros treinadores, compararmos com as que são feitas ao técnico português, e avaliarmos as respostas que cada um dá.
Por norma, os treinadores brasileiros recebem muito mal os questionamentos feitos ao seu trabalho, preferem rebater as perguntas e nunca respondem directo. Já Abel Ferreira, para além de responder às questões colocadas, mesmo as mais incómodas, sempre adiciona, em todas as respostas, aspectos técnico-táticos relevantes e exemplos concretos, que acabam por gerar mais interesse que o tópico inicial.
A diferença de estilos, que tanto espanta os jornalistas, é tremenda porque os técnicos brasileiros encaram as entrevistas como uma guerra, enquanto Abel Ferreira as vê como uma possibilidade normal para partilhar pontos de vista.
É óbvio que as vitórias ajudam a dar credibilidade, mas não é menos verdadeiro que a forma aberta e sem preconceitos usada por Abel Ferreira nas respostas também significa uma lufada de ar fresco no universo futebolístico brasileiro, por norma bem mais fechado em si mesmo.
Aliás, essa forma arrogante de entender o futebol foi bem visível e notória nas reacções dos mesmos jornalistas aquando da chegada de Abel ao Palmeiras. Quem viu os programas desportivos dessa altura recorda certamente os longos e exaustivos discursos argumentativos contra a contratação do técnico português. Tal como já sucedera com Jorge Jesus, o trabalho realizado fez cair por terra quase todas as resistências.
Mas não nos vamos iludir porque a maioria dos jornalistas brasileiros vai continuar a ser cooperativa com os técnicos do país. E a provar isso estão as vozes que continuam a apregoar que nenhum estrangeiro pode ensinar, seja o que for, aos treinadores brasileiros.
É pena que, apesar de dois importantes contributos, poucos tenham aprendido o mais óbvio: “saber não ocupa lugar”, e é na partilha de conhecimentos que os técnicos podem evoluir e contribuir para a valorização do futebol brasileiro.
Já tinha dado este texto por terminado quando, num dos programas brasileiros que assisto religiosamente, foi comentada uma afirmação de Abel Ferreira, em que o técnico português teria comparado o trabalho de José Mourinho com o de Pep Guardiola, dizendo: "Queria ver Guardiola conseguir algo grande com o FC Porto".
Não me alongarei muito sobre esse momento do programa, apenas quero dizer que vi quatro entrevistas de Abel Ferreira a jornalistas/bloggers brasileiros e em nenhuma delas ele fez esse tipo de afirmação. Assim sendo, e reforçando a ideia com que tinha terminado este texto anteriormente. O trabalho de Abel Ferreira no Brasil, por muito bom que venha a ser, vai ficar sempre sujeito a comentários depreciativos, nem que para isso tenham de distorcer ou colar partes de duas ideias distintas para fabricar afirmações que o possam comprometer. As resistências continuam e continuarão. Umas subtis, outras inventadas para caçar "likes" nas redes sociais. Bem jogado jornalismo cooperativista.
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