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Questão de mentalidade - Emanuel Lomelino

Agora que o tema está fora de pauta, creio que é o momento ideal para, sem rodeios nem personalizar a origem da questão, refletir um pouco sobre a diferença entre os treinadores brasileiros e, por exemplo, os argentinos.

Todos lembram alguns discursos inflamados de técnicos brasileiros a contestarem as opções dos clubes canarinhos por treinadores estrangeiros, com argumentos básicos e mal fundamentados.

Sem colocar em causa as capacidades de uns e outros, porque a competência não tem nacionalidade, os treinadores brasileiros estão nessa porque querem e não baixam os pés à terra para pensar nas razões para estarem a ser preteridos.

Em vez de mostrarem preocupação com a chegada de profissionais ao seu país, deviam refletir nos motivos pelos quais quase nenhum está a treinar na Europa enquanto os colegas argentinos estão espalhados pelo velho continente.

A velha questão da equivalência dos cursos é apenas conversa fiada, a verdade está num pequeno grande detalhe que, por causa da dança das cadeiras a que estavam habituados e por serem naturais do país pentacampeão, faz os treinadores canarinhos acharem-se os suprassumos da matéria e terem vistas curtas.

Ao contrário dos brasileiros, os técnicos argentinos não são esquisitos na hora de avaliar as propostas que recebem e não têm problema algum em aceitar dirigir equipas com orçamentos e objectivos modestos.

Ao contrário dos brasileiros, os treinadores das pampas não menosprezam a história de clubes menos mediáticos, antes pelo contrário, respeitam e dispõem-se a contribuir para o crescimento desses clubes, sabendo que o progresso das suas carreiras pode beneficiar muito com esses trabalhos.

Além disso, há uma questão cultural, muito visível na forma como a imprensa brasileira analisa o valor dos clubes, não só europeus, como se apenas os grandes tubarões da Champions League valessem a pena.

Ora, neste quesito temos de fazer referência a uma situação que fere o orgulho dos brasileiros, mas é uma realidade indesmentível no modo como os europeus veem o futebol – ser do país pentacampeão e ganhar estaduais não é currículo.

Currículo é fazer como, por exemplo, Sebastián Beccacece, que fez um trabalho de mérito num clube menor no seu país e decidiu aceitar trabalhar num clube espanhol de ainda menor expressão.

Currículo é fazer como, outro exemplo, Eduardo Coudet, que não tem problemas em trabalhar em gigantes sul-americanos ou num clube da segunda metade da tabela na La Liga.

Currículo é fazer como Héctor Cúper, Maurício Pochettino ou Maurício Pellegrino que aceitaram treinar clubes menores, fosse em Itália, Espanha, Inglaterra, Grécia, etc.

Currículo é fazer como alguns treinadores brasileiros fizeram no passado e treinar clubes modestos em Portugal para depois voltarem ao país de origem e construírem carreiras de sucesso (Antônio Lopes, Abel Braga, Paulo Autuori foram alguns deles).

Currículo é fazer como Paulo Turra que, sem medo e com muitas ambições, chegou agora a um clube que, não sendo dos mais titulados, é um histórico de Portugal e pode abrir-lhe outras portas.

Currículo é fazer como Argel Fuchs, um dos mais acérrimos críticos da chegada de treinadores lusos ao Brasil, e relançar a sua carreira num clube do terceiro escalão português.

É evidente que ganhar troféus é importante, mas não é tudo. Se a quantidade de títulos conquistados fosse o principal critério, Pep Guardiola nunca teria começado a carreira de treinador onde começou e Abel Ferreira já estava num grande da Europa.

Para finalizar esta dissertação reafirmo: a competência não tem nacionalidade e o que falta à maioria dos treinadores brasileiros é a humildade de reconhecer que, por vezes, aquilo que parece um passo atrás na carreira pode ser, exactamente, o oposto e, por mais modesto que seja o clube ou o campeonato, há sempre algo a ganhar com a experiência. Assim como têm feito os argentinos.

O mais curioso disto tudo, e parece ter sido esquecido pelos brasileiros, sempre tão predispostos a vangloriar as conquistas dos seus, foi precisamente por causa deste pensamento menos preconceituoso que nos anos 90 surgiu um dos mais titulados treinadores canarinhos, ao serviço do Bragantino: Vanderlei Luxemburgo – o rei dos estaduais.

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